Teones França
(Historiador)
Na era da Globalização, o fim do “futebol-arte”
Os planos
iniciais não previam o México como sede do mundial de 1986. A escolhida era a
Colômbia, entretanto, no início da década de 1980 o país, assim como outros na
América Latina, vivia um momento econômico bastante negativo o que levou o
presidente Belisario Betancur a desistir da candidatura, declarando que “não há tempo para atender as extravagâncias
da Fifa e de seus sócios”. Alguns tentaram convencer o governo brasileiro,
ainda chefiado pelo General Figueiredo, a promover o evento, o que foi
prontamente recusado sob a argumentação de que a situação vivida por nosso país
exigia “irrestrita austeridade”.
Diante disso, o México se prontificou, mesmo porque os estádios utilizados em
1970 ainda estavam em boas condições.
Muitos
craques se despediram das copas nesse mundial. Foi o caso de Platini, Zico,
Sócrates, Falcão, Rummenigge entre outros. O jogador do torneio foi Maradona,
levando a Argentina ao bicampeonato e marcando, no confronto contra a
Inglaterra nas quartas de final, o que é considerado por muitos o gol mais
bonito da história das copas, driblando seis jogadores desde o meio de campo,
além do goleiro, antes de marcar. Quanto ao Brasil, tínhamos uma seleção que se
não possuía a qualidade da que havia disputado o mundial anterior, nem um
craque em plena forma como o baixinho argentino, como mínimo se equivalia às
outras maiores forças da competição.
E ainda
contávamos com o talento de Zico. Porém, ele passou a maior parte dos jogos no
banco de reservas já que vinha de uma cirurgia no joelho. Nosso selecionado foi
eliminado pela França, nas quartas de final. O jogo estava empatado em 1X1
quando, no meio do segundo tempo, o lateral Branco foi derrubado pelo goleiro
Bats após um passe magistral do ídolo rubro-negro. O normal seria Sócrates
bater, mas este entregou a bola para Zico que chutou fraco e o francês
defendeu. Na disputa de pênaltis o Brasil foi desclassificado.
Contudo, se
no momento do pênalti no decorrer do jogo, Sócrates preferiu não assumir a sua
posição de liderança, em outros momentos teve atitude distinta. No primeiro
jogo, quando cometeram a gafe de executar o hino da independência ao invés do
hino nacional brasileiro, ele não esperou o término da execução para retirar os
seus companheiros de equipe da posição em que estavam perfilados. Contundente
também foi a sua postura de aproveitar a audiência do evento para em todos os
jogos entrar em campo com faixas na cabeça contendo frases contra a fome, as
guerras, o racismo e o imperialismo. A Fifa, obviamente, não gostou de tal
atitude e proibiu posteriormente esse tipo de conduta dos jogadores em seus
campeonatos. Para aqueles que conheciam Sócrates essas atitudes não causaram
estranhamento já que ele sempre procurou associar o futebol à política, mas sob
uma ótica que acreditava ser benéfica aos setores menos favorecidos de nossa
sociedade. Dizia que “o jogador de futebol
nada mais é que um representante de seu povo”. A sua liderança na
construção do que ficou conhecido como “democracia
corintiana” em plena ditadura militar, no início da década de 1980, é um
exemplo disso.
Sócrates,
líder da democracia corintiana, e uma
das faixas usadas na copa de 1986
Na Itália,
em 1990, tivemos uma demonstração nítida da intersecção que há entre futebol e
situação política mundial. No ano anterior o muro de Berlim, símbolo da divisão
da Alemanha em duas – a Ocidental, capitalista e próxima aos Estados Unidos; e
a Oriental, socialista e ligada à União Soviética –, foi derrubado e o processo
de reunificação dos dois países estava em curso e iria se consolidar meses
depois do fim do campeonato. Nesse cenário, a vitória alemã, derrotando a
Argentina na final, foi celebrada em êxtase pela população que portava nos
estádios cartazes com frases do tipo “Nós
somos Copa do Mundo e alguém de novo”.
Beckembauer
e a seleção vitoriosa em 1990 comemoram com o povo alemão
O mesmo
processo que reunificou as Alemanhas – o fim do socialismo real e, consequentemente, da guerra fria – também fez com que essa copa fosse a última de países
como União Soviética, Tchecoslováquia e Iugoslávia, que se fragmentaram em
vários países e, com isso, novas seleções debutariam nas copas seguintes:
República Tcheca, Eslováquia, Ucrânia, Rússia, Croácia, Sérvia, Bósnia e
outras. O fim de um mundo dividido em dois e o início de um globo unificado, na
chamada globalização, já surtia seus efeitos junto à nossa seleção: metade dos
convocados por Lazaroni jogava no exterior, contra apenas dois em 1986. Num
campeonato em que prevaleceu o baixo nível técnico e esquemas defensivos caímos
nas oitavas de final, perdendo para a Argentina de Cannigia e Maradona, na
derrocada que recebeu a conotação pejorativa de “Era Dunga”, “modelo de
jogador”, de acordo com o técnico.
A qualidade
do futebol também permaneceu em baixa nos Estados Unidos, em 1994, assim como a
“Era Dunga” teve continuidade. No
entanto, dessa vez ganhou um tom positivo, pois o próprio, ao lado de Bebeto e
Romário, foram os principais jogadores da campanha que levou o Brasil ao
tetracampeonato mundial. Numa prova de que o futebol-arte era coisa do passado,
o cabeça-de-área foi o jogador que mais se destacou no meio de campo pouco
criativo de nossa seleção.
Presidente
em 1994, Itamar Franco não perdeu a oportunidade de recepcionar os campeões
Demonstrando
que nem tudo – ou quase nada – é apenas esportivo numa copa, o zagueiro
colombiano, Andrés Escobar, foi assassinado em seu país dias após a eliminação
da seleção logo no início dessa competição. Uma das hipóteses que pode ter
motivado o crime é que apostadores, ligados ao tráfico de drogas nesse país,
teriam tido grandes prejuízos com a saída precoce da seleção que era vista
inicialmente como uma das promessas do mundial.
Em 1998, na
França, com Rivaldo no meio de campo e Ronaldo no ataque, a seleção brasileira
apresentou um pouco mais de qualidade técnica do que nas duas copas anteriores
e novamente chegou à final. Dessa vez, com duas diferenças, a adversária foi a
anfitriã e o resultado foi uma derrota acachapante por 3X0. Uma convulsão
sofrida por Ronaldo no dia do jogo final e o fato de mesmo assim ele ter ido a
campo está até hoje mal explicado, o que para alguns seria o suficiente para
concluir que a CBF teria feito um acordo para que o Brasil entregasse o jogo.
Indiscutível, no entanto, é que a França possuía um bom time, com Zidane de
maestro, e era mais forte física e tecnicamente que a nossa seleção. O elenco francês,
composto em maioria por descendentes de árabes e africanos (de países que
haviam sido colônias da França até meados do século passado), tinha apenas oito
jogadores filhos de mães e pais franceses, demonstrando o caráter multirracial
da sociedade desse país, o que ainda é motivo de conflitos sociais e atitudes
racistas, acirrados pela diminuição do mercado de trabalho na França e em
outros países europeus.
Africanos,
em barcos, entram clandestinamente na França à procura de uma vida melhor
Quatro anos depois o destino reservou um desfecho mais feliz para o
nosso futebol. Pela primeira vez a disputa ocorreu na Ásia e em dois
países-sede: Coreia do Sul e Japão. Isso porque a Fifa optou por uma decisão
política já que os dois eram concorrentes e há entre eles rusgas históricas
decorrentes da invasão japonesa à Coreia durante a Segunda Guerra Mundial.
Com Ronaldinho Gaúcho e Rivaldo no meio e Ronaldo no ataque o Brasil
chegou à final e venceu os alemães por 2X0. Na cerimônia de entrega das
premiações o capitão, Cafu, apareceu nas milhões de TV’s espalhadas pelo mundo
que acompanhavam a final com uma frase escrita por ele em sua camisa: “100% Jardim Irene”. Com esse gesto,
além de associar o humilde bairro paulistano em que nasceu a um momento de
festa, levantou a autoestima da população brasileira mais carente. Ao chegarem
ao Brasil os jogadores foram recepcionados em Brasília pelo presidente Fernando
Henrique que lhes concedeu a Medalha da Ordem do Mérito Nacional, num claro
intuito de, tal e qual o presidente Médice, associar a conquista futebolística
ao seu governo num ano de eleição presidencial. Mas, nem a aproximação com os
jogadores vitoriosos ajudou muito a José Serra, candidato do presidente, que
perdeu as eleições para Lula meses depois.
Cafu
ergue a taça em 2002, após escrever em sua camisa “100% Jardim Irene”
FHC,
à la Bellini, repete a atitude de Médice e ao lado dos campeões de 2002 ergue a
taça
Já dissemos
que a vitória na copa de 1990 coroou de forma sublime a reunificação das duas Alemanhas
e a derrubada do Muro de Berlim. Entretanto, isso não se comparou à celebração
desse país e de sua população ao sediar a copa dezesseis anos depois.
Finalmente, os alemães foram às ruas empunhando bandeiras com as cores
nacionais, o que não pôde ocorrer em 1974 quando a Alemanha Ocidental foi sede
da competição, mas o país ainda estava dividido em duas partes. O orgulho de
ser alemão, que havia sido destruído junto com o país após a derrota de Hitler
na Segunda Guerra e a divulgação das atrocidades cometidas por ele e pelos
nazistas, foi resgatado nessa copa. Nem o fato de ter terminado a competição em
terceiro lugar diminuiu esse orgulho, conforme acreditava o técnico da seleção,
Klinsmann: “Nós não ganhamos a copa, mas
ganhamos o país... éramos um país com uma história negativa... o mais
importante foi devolver o orgulho de ser patriota ao povo alemão”. A copa
foi vencida pelos italianos, que derrotaram os franceses na final nas cobranças
de pênaltis. Franceses, que desclassificaram a nossa seleção nas quartas de
final.
A copa
finalmente chegou à África, o continente mais pobre do planeta, após oitenta
anos. A África do Sul foi a sede do mundial de 2010 e fez questão de demonstrar
ao mundo que o apartheid (regime em que apenas os brancos governavam e os
negros eram relegados a guetos) era coisa do passado. Não foi subserviente a
todas as ordens da Fifa, como a que proibia o uso das vuvuzelas (cornetas
grandes) nos estádios, sob a alegação de que eram uma manifestação cultural do
país.
Na
África do sul, as vuvuzelas não se calaram ao “padrão-Fifa
Mandela,
expressão maior da luta sul-africana contra o apartheid, que por muitos anos
foi o motivo principal para o país ser impedido pela Fifa de participar de uma
copa do mundo
A vencedora
foi a Espanha e seu meio de campo, composto por Xavi e Iniesta, deu esperanças
aos apreciadores de que o futebol-arte poderia estar de volta. Na final
derrotou a Holanda, seleção que eliminou o Brasil nas quartas de final. Dunga,
o nosso técnico, procurou incutir em seus comandados o estilo de jogo de força
e raça, característico de sua “era”,
mas exagerou na dose, criando proibições e regras, estabelecendo a relação
entre ele, jogadores e jornalistas num patamar quase militar.
Pondo fim à análise sobre futebol e política ao longo
de oitenta e quatro anos de copas do mundo, refletiremos na quinta, e última,
parte deste texto a respeito das continuidades e rupturas nessa relação às
vésperas do campeonato em nosso país e das principais motivações que, desde o
ano passado, levam milhares de pessoas às ruas no Brasil em protestos contra o “padrão-Fifa”.