Teones França
(Historiador)
As copas sob o domínio dos ditadores
Nas duas
décadas seguintes enquanto muitos ditadores massacravam vidas e valores
democráticos em vários países do mundo, inclusive no Brasil, o futebol vivia
momentos de glória com uma estupenda diversidade de craques espalhados pela
América do Sul e Europa.
Portugal e
Inglaterra conseguiram montar bons times para a copa de 1966, ocorrida neste
último país, a ponto de só terem conseguido repetir tal feito apenas
recentemente. O primeiro apresentou ao mundo o craque da competição, Eusébio e,
não à toa, eliminou os bicampeões ainda na primeira fase – numa melancólica
despedida de Garrincha das copas –, terminando em terceiro lugar. A campeã foi
a seleção anfitriã, de Bobby Charlton, que derrotou a Alemanha Ocidental na
prorrogação no jogo final.
Quando a
copa do mundo de 1970 teve início, milhares de pessoas já haviam morrido em
consequência de uma guerra, que teve dentre os motivos para ser originada um
confronto pelas eliminatórias desse campeonato. Conhecido como “guerra do futebol”, o conflito entre El
Salvador e Honduras deixou como saldo 6 mil mortos e começou com os jogos
eliminatórios para a copa entre esses dois países. Nos anos anteriores milhares
de salvadorenhos atravessaram a fronteira de Honduras, sendo vistos como
invasores pela população local, então vêm os jogos e com os ânimos já
exaltados, na partida na capital hondurenha, até pedras foram jogadas no hotel
da seleção salvadorenha; o troco veio no jogo da volta quando o hino de
Honduras foi vaiado e um pano sujo foi hasteado no lugar da bandeira do país.
Um mês depois, a guerra começou.
Essa copa
foi a primeira transmitida ao vivo para todo o Brasil, algo que foi bem
aproveitado pela ditadura militar brasileira como exemplo de desenvolvimento
proporcionado pelo milagre econômico,
em que o PIB do país crescia a dois dígitos, porém, graças à concentração de
renda e ao aumento da dívida externa. Nossa seleção chegou ao tricampeonato com
uma linha de frente formada por cinco jogadores que eram da posição do camisa
10 em seus times: Pelé, Rivelino, Jairzinho, Tostão e Gerson, provando que o
craque prescinde ao esquema tático. Sendo a primeira seleção a se tornar
tricampeã, conquistou de forma definitiva a taça Jules Rimet – que seria
derretida treze anos depois.
Na estreia
contra a Tchecoslováquia, vencemos, mas levamos o primeiro gol e na comemoração
o atacante tcheco fez o sinal da cruz em protesto contra o governo ditatorial
socialista que estava à frente de seu país. Seguiram-se mais cinco vitórias,
sendo que a mais difícil foi o 1X0 contra a Inglaterra, jogo em que o goleiro
Gordon Banks realizou a defesa considerada a mais difícil de todas as copas.
Por aqui, enquanto o presidente Médice aproveitava a vitória no campo para
exaltar o país e seu governo, o governador-interventor de São Paulo, Paulo
Maluf, presenteou cada atleta com um fusca, pago com dinheiro público. Já a
maioria da população, inebriada por mais uma façanha de nosso futebol, via os
gols de nossos craques ao som de “noventa
milhões em ação, pra frente Brasil, salve a seleção...”, desconhecendo que
inimigos do regime militar eram mortos e/ou torturados naquele momento.
Pelé,
Torres e Maluf
Quatro anos
depois, a Alemanha sediou pela primeira vez uma copa, porém o clima era de
muita apreensão em virtude dos acontecimentos ocorridos em meio à olimpíada que
teve esse país como sede dois anos antes, quando atletas israelenses foram
assassinados por grupos palestinos. Na verdade, o clima político era tenso
mesmo antes de começar o torneio já que a União Soviética se recusou a
enfrentar o Chile na repescagem das eliminatórias no Estádio Nacional de
Santiago por este ter sido o palco de atrocidades cometidas pela ditadura de
Pinochet. Por isso, os soviéticos perderam o jogo por W.O. e ficaram fora da
copa. Durante o torneio, pela primeira vez em uma competição internacional, as
Alemanhas, Oriental e Ocidental, se enfrentaram após a divisão do país em dois
– um ligado aos Estados Unidos e o outro, à União Soviética – ao final da
segunda guerra mundial.
Estádio
Nacional de Santiago, palco de prisão e tortura na ditadura do General Pinochet
O Brasil
apresentou um time de estilo bem diferente do de 1970, que ficou conhecido pelo
esquema retranqueiro de seu treinador: Zagalo, novamente. Após uma pálida
primeira fase, o Brasil chegou às semifinais e cruzou com a Holanda, saindo
derrotada por 2X0. Esta, por sua vez, apresentou o seu Carrossel ou a Laranja
Mecânica (menção ao filme de Stanley Kubrick e cor principal dessa seleção)
num esquema em que os jogadores não guardavam posição fixa e revezavam-se entre
defesa, meio de campo e ataque, capitaneado pelo craque daquele momento:
Cruyff. Entretanto, na final contra os donos da casa, que contavam com craques
de peso, como Breitner, Müller, Overath e Beckenbauer, perderam por 2X1.
Repetia-se, assim, 1954.
Da mesma
forma que o Brasil, a Argentina viveu alguns anos sob o domínio de ditadores
militares. Quando a copa de 1978 ocorria nesse país quem estava no governo era
o General Jorge Videla, momento em que – de acordo com levantamentos recentes –
mais de dez mil pessoas eram mortas, torturadas ou desapareciam para sempre.
A seleção
argentina, contudo, possuía um time de jogadores talentosos, como Mario Kempes,
Ardilles, Passarela e outros, mas, suspeita-se, chegou à conquista do
campeonato com a interferência direta dos ditadores através de suborno e
manipulação de resultados. Assim como os militares brasileiros se apropriaram
do tricampeonato mundial para camuflar as atrocidades cometidas pelo governo
ditatorial, a conquista argentina levou uma multidão às ruas em comemoração e
diminuiu os protestos dos oposicionistas. Na final derrotou os holandeses, sem
Cruyff, pois este decidira por conta própria boicotar o torneio em protesto aos
problemas políticos enfrentados pelos argentinos. Mesmo não tendo seguido
Cruyff, o restante do time, ao receber a medalha de prata, virou de costas para
Videla – morto em 2003, na prisão, condenado pelos crimes de sua ditadura, ao
contrário de seus párias brasileiros.
Videla
entrega taça a Passarella, capitão da seleção argentina em 1978
Para
muitos, o Brasil é quem deveria ter jogado a final contra a Holanda. Com um
time composto por Rivelino, Reinaldo, Nelinho, Dirceu, Zico, entre outros,
chegaríamos à final se a Argentina não derrotasse o Peru por uma diferença de
quatro gols. Sensação da copa até então, o Peru fez uma partida medíocre,
perdeu de 6X0 e seu goleiro, Quiroga, argentino de nascimento, falhou em vários
gols.
Manchete
de jornal argentino afirmava, em 2012, que um ex-senador peruano denunciou que
a goleada de 6X0 dos argentinos em 78 foi fruto de acordo entre as ditaduras
dos dois países, aliadas na Operação Condor, criada pelas ditaduras da América
do Sul para reprimir opositores
Quatro anos
depois a Argentina se envolveria numa guerra contra um inimigo externo. Documentos descobertos recentemente indicam que
Margaret Thatcher pensou em retirar as seleções britânicas (Inglaterra, Escócia
e Irlanda do Norte) da copa da Espanha, em 1982, porque tinha receio de um
possível confronto entre esses países e a Argentina já que um dia após o início
do mundial a guerra das Malvinas terminara com a vitória dos ingleses sobre os
sul-americanos. Não se sabia, inclusive, qual poderia ser a atitude dos
hooligans (violentos torcedores ingleses), tão temidos naquele momento. No
final das contas todas as três seleções britânicas participaram do evento e não
enfrentaram os hermanos.
Apesar de
campeã do mundo e de contar com o excepcional Maradona despontando para o
futebol mundial, a Argentina cumpriu papel de coadjuvante numa copa em que duas
outras seleções brilharam: a italiana, que se sagraria campeã, e a brasileira.
Sob a batuta de Telê Santana nossa seleção reuniu um elenco bastante técnico,
formando um conjunto (Leandro, Júnior, Falcão, Sócrates, Zico etc.) que, apesar
de derrotado pela própria Itália nas quartas de final, ainda é visto como um
dos maiores times de todos os tempos. A única exceção poderia ser o
centroavante Serginho, mas não esqueçamos que o titular até meses antes do
mundial era um dos melhores atacantes que nosso futebol já produziu: Reinaldo.
A derrota de 3X2 para os italianos deu início à tese do futebol de resultados – é melhor jogar feio, mas ganhar – que
afastará gradativamente o nosso futebol de sua tradição de associá-lo à arte.
Ela também gerou um clima de luto país afora, pois nunca antes – e, talvez, nem
depois – o futebol mobilizou tanto nosso povo a ponto de praticamente todas as
ruas estarem coloridas de verde e amarelo, algo que até se repetiria dois anos
depois, não por causa da copa do mundo, mas para exigir eleições diretas para
presidente.
Menino-símbolo
do luto brasileiro após a eliminação para a Itália em 1982
Na 4ª e penúltima parte iremos analisar a relação
entre futebol e política num cenário mundial bem distinto do que vimos aqui. O
fim da guerra fria, o início da
chamada globalização, a reunificação
das Alemanhas serão processos que influenciarão todo o mundo e o futebol não
ficará de fora. O futebol-arte chega ao fim enquanto adere à sociedade do espetáculo e as copas
passam a adquirir o padrão-Fifa.