quarta-feira, 4 de junho de 2014

A PÁTRIA DE CHUTEIRAS! COPA DO MUNDO DE FUTEBOL E POLÍTICA: UMA RELAÇÃO HISTÓRICA (PARTE 4 / 5)


Teones França (Historiador)

Na era da Globalização, o fim do “futebol-arte”
Os planos iniciais não previam o México como sede do mundial de 1986. A escolhida era a Colômbia, entretanto, no início da década de 1980 o país, assim como outros na América Latina, vivia um momento econômico bastante negativo o que levou o presidente Belisario Betancur a desistir da candidatura, declarando que “não há tempo para atender as extravagâncias da Fifa e de seus sócios”. Alguns tentaram convencer o governo brasileiro, ainda chefiado pelo General Figueiredo, a promover o evento, o que foi prontamente recusado sob a argumentação de que a situação vivida por nosso país exigia “irrestrita austeridade”. Diante disso, o México se prontificou, mesmo porque os estádios utilizados em 1970 ainda estavam em boas condições.
Muitos craques se despediram das copas nesse mundial. Foi o caso de Platini, Zico, Sócrates, Falcão, Rummenigge entre outros. O jogador do torneio foi Maradona, levando a Argentina ao bicampeonato e marcando, no confronto contra a Inglaterra nas quartas de final, o que é considerado por muitos o gol mais bonito da história das copas, driblando seis jogadores desde o meio de campo, além do goleiro, antes de marcar. Quanto ao Brasil, tínhamos uma seleção que se não possuía a qualidade da que havia disputado o mundial anterior, nem um craque em plena forma como o baixinho argentino, como mínimo se equivalia às outras maiores forças da competição.
E ainda contávamos com o talento de Zico. Porém, ele passou a maior parte dos jogos no banco de reservas já que vinha de uma cirurgia no joelho. Nosso selecionado foi eliminado pela França, nas quartas de final. O jogo estava empatado em 1X1 quando, no meio do segundo tempo, o lateral Branco foi derrubado pelo goleiro Bats após um passe magistral do ídolo rubro-negro. O normal seria Sócrates bater, mas este entregou a bola para Zico que chutou fraco e o francês defendeu. Na disputa de pênaltis o Brasil foi desclassificado.
Contudo, se no momento do pênalti no decorrer do jogo, Sócrates preferiu não assumir a sua posição de liderança, em outros momentos teve atitude distinta. No primeiro jogo, quando cometeram a gafe de executar o hino da independência ao invés do hino nacional brasileiro, ele não esperou o término da execução para retirar os seus companheiros de equipe da posição em que estavam perfilados. Contundente também foi a sua postura de aproveitar a audiência do evento para em todos os jogos entrar em campo com faixas na cabeça contendo frases contra a fome, as guerras, o racismo e o imperialismo. A Fifa, obviamente, não gostou de tal atitude e proibiu posteriormente esse tipo de conduta dos jogadores em seus campeonatos. Para aqueles que conheciam Sócrates essas atitudes não causaram estranhamento já que ele sempre procurou associar o futebol à política, mas sob uma ótica que acreditava ser benéfica aos setores menos favorecidos de nossa sociedade. Dizia que “o jogador de futebol nada mais é que um representante de seu povo”. A sua liderança na construção do que ficou conhecido como “democracia corintiana” em plena ditadura militar, no início da década de 1980, é um exemplo disso.



Sócrates, líder da democracia corintiana, e uma das faixas usadas na copa de 1986

Na Itália, em 1990, tivemos uma demonstração nítida da intersecção que há entre futebol e situação política mundial. No ano anterior o muro de Berlim, símbolo da divisão da Alemanha em duas – a Ocidental, capitalista e próxima aos Estados Unidos; e a Oriental, socialista e ligada à União Soviética –, foi derrubado e o processo de reunificação dos dois países estava em curso e iria se consolidar meses depois do fim do campeonato. Nesse cenário, a vitória alemã, derrotando a Argentina na final, foi celebrada em êxtase pela população que portava nos estádios cartazes com frases do tipo “Nós somos Copa do Mundo e alguém de novo”.



Beckembauer e a seleção vitoriosa em 1990 comemoram com o povo alemão

O mesmo processo que reunificou as Alemanhas – o fim do socialismo real e, consequentemente, da guerra fria – também fez com que essa copa fosse a última de países como União Soviética, Tchecoslováquia e Iugoslávia, que se fragmentaram em vários países e, com isso, novas seleções debutariam nas copas seguintes: República Tcheca, Eslováquia, Ucrânia, Rússia, Croácia, Sérvia, Bósnia e outras. O fim de um mundo dividido em dois e o início de um globo unificado, na chamada globalização, já surtia seus efeitos junto à nossa seleção: metade dos convocados por Lazaroni jogava no exterior, contra apenas dois em 1986. Num campeonato em que prevaleceu o baixo nível técnico e esquemas defensivos caímos nas oitavas de final, perdendo para a Argentina de Cannigia e Maradona, na derrocada que recebeu a conotação pejorativa de “Era Dunga”, “modelo de jogador”, de acordo com o técnico.
A qualidade do futebol também permaneceu em baixa nos Estados Unidos, em 1994, assim como a “Era Dunga” teve continuidade. No entanto, dessa vez ganhou um tom positivo, pois o próprio, ao lado de Bebeto e Romário, foram os principais jogadores da campanha que levou o Brasil ao tetracampeonato mundial. Numa prova de que o futebol-arte era coisa do passado, o cabeça-de-área foi o jogador que mais se destacou no meio de campo pouco criativo de nossa seleção.


Presidente em 1994, Itamar Franco não perdeu a oportunidade de recepcionar os campeões

Demonstrando que nem tudo – ou quase nada – é apenas esportivo numa copa, o zagueiro colombiano, Andrés Escobar, foi assassinado em seu país dias após a eliminação da seleção logo no início dessa competição. Uma das hipóteses que pode ter motivado o crime é que apostadores, ligados ao tráfico de drogas nesse país, teriam tido grandes prejuízos com a saída precoce da seleção que era vista inicialmente como uma das promessas do mundial.
Em 1998, na França, com Rivaldo no meio de campo e Ronaldo no ataque, a seleção brasileira apresentou um pouco mais de qualidade técnica do que nas duas copas anteriores e novamente chegou à final. Dessa vez, com duas diferenças, a adversária foi a anfitriã e o resultado foi uma derrota acachapante por 3X0. Uma convulsão sofrida por Ronaldo no dia do jogo final e o fato de mesmo assim ele ter ido a campo está até hoje mal explicado, o que para alguns seria o suficiente para concluir que a CBF teria feito um acordo para que o Brasil entregasse o jogo. Indiscutível, no entanto, é que a França possuía um bom time, com Zidane de maestro, e era mais forte física e tecnicamente que a nossa seleção. O elenco francês, composto em maioria por descendentes de árabes e africanos (de países que haviam sido colônias da França até meados do século passado), tinha apenas oito jogadores filhos de mães e pais franceses, demonstrando o caráter multirracial da sociedade desse país, o que ainda é motivo de conflitos sociais e atitudes racistas, acirrados pela diminuição do mercado de trabalho na França e em outros países europeus.


Africanos, em barcos, entram clandestinamente na França à procura de uma vida melhor

Quatro anos depois o destino reservou um desfecho mais feliz para o nosso futebol. Pela primeira vez a disputa ocorreu na Ásia e em dois países-sede: Coreia do Sul e Japão. Isso porque a Fifa optou por uma decisão política já que os dois eram concorrentes e há entre eles rusgas históricas decorrentes da invasão japonesa à Coreia durante a Segunda Guerra Mundial.
Com Ronaldinho Gaúcho e Rivaldo no meio e Ronaldo no ataque o Brasil chegou à final e venceu os alemães por 2X0. Na cerimônia de entrega das premiações o capitão, Cafu, apareceu nas milhões de TV’s espalhadas pelo mundo que acompanhavam a final com uma frase escrita por ele em sua camisa: “100% Jardim Irene”. Com esse gesto, além de associar o humilde bairro paulistano em que nasceu a um momento de festa, levantou a autoestima da população brasileira mais carente. Ao chegarem ao Brasil os jogadores foram recepcionados em Brasília pelo presidente Fernando Henrique que lhes concedeu a Medalha da Ordem do Mérito Nacional, num claro intuito de, tal e qual o presidente Médice, associar a conquista futebolística ao seu governo num ano de eleição presidencial. Mas, nem a aproximação com os jogadores vitoriosos ajudou muito a José Serra, candidato do presidente, que perdeu as eleições para Lula meses depois.




Cafu ergue a taça em 2002, após escrever em sua camisa “100% Jardim Irene”




FHC, à la Bellini, repete a atitude de Médice e ao lado dos campeões de 2002 ergue a taça

Já dissemos que a vitória na copa de 1990 coroou de forma sublime a reunificação das duas Alemanhas e a derrubada do Muro de Berlim. Entretanto, isso não se comparou à celebração desse país e de sua população ao sediar a copa dezesseis anos depois. Finalmente, os alemães foram às ruas empunhando bandeiras com as cores nacionais, o que não pôde ocorrer em 1974 quando a Alemanha Ocidental foi sede da competição, mas o país ainda estava dividido em duas partes. O orgulho de ser alemão, que havia sido destruído junto com o país após a derrota de Hitler na Segunda Guerra e a divulgação das atrocidades cometidas por ele e pelos nazistas, foi resgatado nessa copa. Nem o fato de ter terminado a competição em terceiro lugar diminuiu esse orgulho, conforme acreditava o técnico da seleção, Klinsmann: “Nós não ganhamos a copa, mas ganhamos o país... éramos um país com uma história negativa... o mais importante foi devolver o orgulho de ser patriota ao povo alemão”. A copa foi vencida pelos italianos, que derrotaram os franceses na final nas cobranças de pênaltis. Franceses, que desclassificaram a nossa seleção nas quartas de final.
A copa finalmente chegou à África, o continente mais pobre do planeta, após oitenta anos. A África do Sul foi a sede do mundial de 2010 e fez questão de demonstrar ao mundo que o apartheid (regime em que apenas os brancos governavam e os negros eram relegados a guetos) era coisa do passado. Não foi subserviente a todas as ordens da Fifa, como a que proibia o uso das vuvuzelas (cornetas grandes) nos estádios, sob a alegação de que eram uma manifestação cultural do país.



Na África do sul, as vuvuzelas não se calaram ao “padrão-Fifa



Mandela, expressão maior da luta sul-africana contra o apartheid, que por muitos anos foi o motivo principal para o país ser impedido pela Fifa de participar de uma copa do mundo

A vencedora foi a Espanha e seu meio de campo, composto por Xavi e Iniesta, deu esperanças aos apreciadores de que o futebol-arte poderia estar de volta. Na final derrotou a Holanda, seleção que eliminou o Brasil nas quartas de final. Dunga, o nosso técnico, procurou incutir em seus comandados o estilo de jogo de força e raça, característico de sua “era”, mas exagerou na dose, criando proibições e regras, estabelecendo a relação entre ele, jogadores e jornalistas num patamar quase militar.


                Pondo fim à análise sobre futebol e política ao longo de oitenta e quatro anos de copas do mundo, refletiremos na quinta, e última, parte deste texto a respeito das continuidades e rupturas nessa relação às vésperas do campeonato em nosso país e das principais motivações que, desde o ano passado, levam milhares de pessoas às ruas no Brasil em protestos contra o “padrão-Fifa”.

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